terça-feira, 3 de junho de 2008

O Reacionário

Já falei, várias vezes, do palácio do Alto da Boa Vista. No seu jardim sem uma flor, que Burle Marx fez, há uma estátua de mulher nua (nas noites frias a estátua morre gelada). Há uns três ou quatro dias, a dona do palácio bate o telefone para mim. É uma jovem milionária, casada com um velho milionário. E por aí se vê como o dinheiro atrai o dinheiro.
O mundo estaria superiormente organizado se a rica se casasse com o pobre e o pobre com a rica. Digamos que o Onassis tivesse o gosto da Loteria Esportiva, que só escolhe lavadeiras. E que a Jacqueline Kennedy escolhesse, não uma lavadeira, claro, mas um lavador de pára-lamas. Seria uma solução perfeita. De vez em quando começo a imaginar Jacqueline apaixonada por um chofer de lotação.
Aí está: — chofer de lotação. Dirão vocês que não existem mais lotações. Mas, bolas, estamos aqui fazendo ficção. Não sei se vocês se lembram. Mas o chofer de lotação era um tipo admirável. Arregaçava as calças cáqui até os joelhos e saía por aí decepando postes, árvores, obeliscos. Incomparável mundo, repito, em que Jacqueline Kennedy fosse para o tanque e a lavadeira, para as ilhas de Onassis.
Deixemos de lado a fantasia e passemos para os fatos sólidos. Disse eu que a grã-fina do Alto da Boa Vista me telefonara. Se me perguntarem se é bonita, feia, simpática ou antipática, não saberei dizê-lo. A grã-fina em julgamento não é uma cara, um corpo, um olhar, um sorriso, um gesto. Quando falo a seu respeito estou pensando no seu palácio, no seu jardim, nos seus 1500 decotes, nos seus 2 mil sapatos, nas suas jóias. Há um quadro de Degas, de Monet, nas suas paredes; ou um galo de Picasso? Se o galo de Picasso não estiver no galinheiro, também o galo é levado em conta. Resumindo: — são todos esses valores, e mais os tapetes, que a fazem e a embelezam. Mas se a isolarmos de tudo isso ela se transforma numa bruxa de disco infantil.
Mas como ia dizendo: — telefonou-me e fez o convite. Avisou: — “Vem porque convidei também uma comunista”. Ora, meu anticomunismo começou aos onze anos. Garoto de calças curtas, conheci uma meia dúzia e tomei-me de um horror que, meio século depois, é o mesmo. Ou por outra: — não é o mesmo, é muito maior. Quis fugir do convite, mas ela não abria mão da minha presença: — “Brigo com você”.
Sou, como sempre digo, um pobre nato, um pobre vocacional. Tudo me ofende e me humilha no palácio do Alto da Boa Vista, desde a casaca do mordomo ao galo de Picasso. Passei o dia todo pensando com um pavor sagrado da inteligência de salão. Às sete da noite decidi: — “Não vou”. Mas houve uma coincidência diabólica: — mal tomei a decisão, bate o telefone, Era a grã-fina: — “Nelson, vou te falar sério, hein? Se você não vier, corto relações contigo. Está avisado”. Tive que ir.
Não fui dos primeiros a chegar. Assim que me viu, inclina-se o mordomo de filme policial inglês e sussurra: — “O nosso time está bom”. E eu: — “Vamos ver, vamos ver”. A anfitriã vinha radiante: — “Ah, Nelson, Nelson! Gosto de você pra (seguiu-se o palavrão)”. Imediatamente, verifiquei que aquela reunião era um viveiro de palavrões. A grã-fina levou-me pela mão: — “Vou te apresentar a minha amiga”. A comunista era uma dessas figuras que dariam muito bem no uniforme do Exército da Salvação. A dona da casa fez a apresentação: — “Aqui, Nelson Rodrigues, o maior reacionário do país”. A comunista olha-me de alto a baixo, com uma boquinha de nojo: — “Ah, o senhor?”.
Vozes pedem: — “Repete o que a senhora está dizendo”. Estão todos muito risonhos e cada qual com o seu copo de uísque. A outra, com um olhar que me varou fisicamente, começou: — “Eu estava dizendo que o Exército brasileiro nunca fez nada”. Pausa. Estão esperando minha palavra. O olho da socialista está cravado em mim. Pergunto: — “A senhora acha que”. Interrompeu-me: — “Acho não. São os fatos, são os fatos”. Quero continuar: — “Mas a senhora não ignora que”. Fez um gesto: — “Nada de sofismas”. Sou paciente: — “Posso falar?”.
Novamente tomou-me a palavra: — “Já sei o que o senhor vai dizer. Vai falar em Pistóia? Ora, ora! Eram reservistas, além do mais reservistas”. Atalhei rápido: — “E os reservistas não são do Exército? Não são também o Exército?”. Exaltou-se: “Não. Os reservistas são os nossos filhos”. Já toda uma platéia — com 90% de bêbados de ambos os sexos — nos cercava. Queria saber: — “A senhora tem filhos?”. Fuzilou: — “Não, e por quê? Faz diferença? Pai, mãe, filhos, avó, são 'definições sexuais' “. Aparteio: — “A senhora está repetindo o que disse, aqui, uma americana que era rigorosamente uma débil mental”. Vira-se, com o olho rútilo: — “Está me chamando de débil mental?”. Trato de amaciar: — “Estou chamando a outra, a outra. A americana é que é débil mental”.
A dona da casa intervém: — “Ele não teve nenhuma intenção de ofender”. A comunista: — “Muito bem. Olha aqui, eu quero fatos, percebeu? Quando o senhor chegou, eu estava dizendo que há uma semana aí do Exército. Por que, se o Exército não fez nada?”. Alguém disse: — “Não precisamos de Exército”. Reconheço: — “Estou vendo que a senhora não viu, jamais, o quadro de Pedro Américo”. Empertigou-se: — “O que é que o senhor quer dizer com isso?”. E eu: — “Minha senhora, quem fez a nossa Independência, e a sua, estava de esporas e penacho. Entendeu, minha senhora? A senhora já usou esporas e penacho? Dê graças a Deus às esporas e graças a Deus aos penachos”.
A comunista: — “O senhor é um reacionário”. Não paramos aí. Discutimos duas horas. Disse-lhe que, enquanto os dragões soltavam o grito do Ipiranga, ela, a comunista, devia estar ali, no Alto da Boa Vista, fazendo aquele mesmo comício. Retrucou, furiosa: — “Suas piadas são velhas!”. É muito simples dizer que o Exército não fez nada. Por que não dizer, inversamente, que na hora da decisão o Exército sempre fez tudo? A falsa “passionária” exigia: — “Quero os fatos”. Estendia a mão, como se eu pudesse tirar os fatos do bolso e doá-los aos menos favorecidos. Digo esportivamente: — “Não se exalte, não se exalte”.
Sapateou, possessa, esganiçando-se: — “Quem é que está exaltada? Ou está me chamando de histérica?”. Confesso, mansamente: — “A senhora não é a histérica. O histérico sou eu”. Mas vou dizendo as minhas verdades. Se não fossem os dragões, as esporas e os penachos, nós seríamos aqueles moleques de Debret que vendiam água à aristocracia do tempo. E a República? Perguntei-lhe: — “Já ouviu falar em Deodoro? Da estação, já ouviu? Não sei se a estação é antes ou depois de Realengo”. Havia um certo silêncio desconfortável. Um grã-fino, que é revolucionário quando lúcido, e reacionário quando bebe, engrolava as palavras: — “Dá-lhe duro, Nelson, dá-lhe duro!”. Eu queria saber se ela vira, alguma vez, a estátua de Deodoro. Estava fardada ou de fraque? E, não sendo jóquei, estava montado por quê? Porque era soldado. Ou não?
Em 1922, quem eram os Dezoito do Forte? Havia um civil, Otávio Correia, que, numa adesão súbita e suicida, juntou-se para morrer com os jovens oficiais. Tudo que iria acontecer depois começava ali. Realmente, os que saíram do Forte e caminharam do Posto Seis à Hilário Gouveia não iam ganhar de ninguém, nem esperavam nenhuma vitória. Mas esse arremesso fatalista de uns poucos deflagrou todo o processo brasileiro. Depois de 22, veio 24. O general Isidoro Dias Lopes era general? É mesmo: — era general. Seria possível o movimento de 30 se excluíssemos os militares? E mais: — 35. A resistência contra os comunistas em 35 etc. etc. etc. E agora fazia-se a Revolução que as esquerdas não souberam fazer.
As esquerdas tiveram tudo: — poder, dinheiro, armas. Não fizeram nada. Minto: — fizeram o caos. E os socialistas que andam por aí têm apenas a vocação e a nostalgia do caos. A comunista rilhava os dentes: — “É preciso ser contra tudo”. Insisto, com a maior doçura: — “Portanto, se os fatos querem dizer alguma coisa, a senhora deve comemorar também a Semana do Exército brasileiro”. A cara da mulher não era mais cara e sim máscara do ódio. Sim, do seu lábio pendia a baba elástica e bovina da ira. Perguntou, rouca: — “O senhor confessa que está com isso que está aí?”. Perdi um pouco a paciência: — “Prefiro estar com isso, como a senhora diz, do que estar com os crimes do seu socialismo”. Relembrei que, de uma vez só, Stalin matara de fome punitiva 12 milhões de camponeses. E o pacto germano-soviético? E os processos de Moscou? E as anexações brutalíssimas? E a invasão da Tcheco-Eslováquia e da Hungria? E os povos degradados e reduzidos a passividade escrava? E os intelectuais internados nos hospícios? O que devemos ao socialismo é isto: — a antipessoa, o anti-homem.


por Nelson Rodrigues, na crônica "O Reacionário" de 24/8/1971. Publicado no livro "O reacionário: memórias e confissões", São Paulo, Cia das Letras, 1995, p. 208.


Nelson Rodrigues - Este livro é uma das coisas mais sérias que já fiz na minha vida. Antes de falar de mim, mal ou bem, o sujeito deve ler o meu livro para saber o que eu acho, para saber do meu anticomunismo, saber do meu horror a Marx...
Marx não toma conhecimento da morte. E nós exigimos de Marx a devolução de nossa alma imortal. Tudo isso está no livro. Agora, eu tenho uma virtude única, que é a seguinte: não tenho medo de passar por reacionário. Querem me chamar de reacionário, chamem; querem me pichar como reacionário, pichem; querem me pendurar num galho de árvore como ladrão de cavalo, pendurem.
Mas eu sou homem que não aceita essa impostura gigantesca dos chamados países socialistas. Por mais que eu tenha horror da política, há muita política no meu livro. Eu acho que a política corrompe qualquer um, mas ela é um fato.
Alias, vocês querem saber de uma coisa? Eu comecei a ficar anticomunista aos 11 anos de idade. Eu era um rato de jornal e nessa ocasião comecei a freqüentar o jornal A Nação, do Leônidas de Rezende, um comunista tremendo. Então, um dia assim sem mais nem menos, um rapaz me disse que, se o partido mandasse, ele estrangularia a sua própria mãe. Era só o partido mandar.
A ONU, por exemplo, não considera o Brejnev um canalha. Para ela, o fato de existirem intelectuais internados em hospícios não representa um ato atentatório aos direitos humanos. Agora, vou te dizer uma coisa: eu pensei muito quando dei ao meu livro o título de O Reacionário. Porque no duro, no duro, eu não sou reacionário. A mais cruel forma de reacionarismo está nos países socialistas, na Rússia, em Cuba, na China, etc. Realmente, eu sou um libertário.
Veja você: dois pobres-diabos cidadãos soviéticos seqüestraram um avião para deixar o "paraíso" e foram parar na Finlândia. Entregaram-se ao governo finlandês, que os devolveu ao Brejnev. Vão ser naturalmente fuzilados. Pois bem: quem protestou contra isso? Onde está o manifesto dos intelectuais com 3.999 assinaturas?
No duro, eu sou um libertário. Eles, marxistas, é que são reacionários. Repito mais uma vez: os marxistas é que são reacionários.

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