sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ainda o Revanchismo...

“Eles” têm uma tática: velha, manjada, ridícula até, mas que costuma funcionar. Se você não está com eles, então é um representante do mal. E tudo o que disser está maculado por esse suposto comprometimento com o mundo das trevas. (...) Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) seguem firmes no propósito de revogar a Lei da Anistia para um dos lados que transgrediram as leis durante o regime militar. Os dois abriram fogo contra a Procuradoria Geral da União, que reafirmou — ó escândalo!!! — os termos da Lei de Anistia. E aí daquele que discordar.

Sofrerá a acusação que a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, do Ministério Público Federal, faz à AGU. Disse a valente: “A União está defendendo os comandantes do órgão integrado por homicidas, torturadores, estupradores e outros criminosos". É o fim da picada! Dois ministros de estado estão promovendo, acreditem!, uma espécie de subversão — pelo visto, continuaram a usar o cachimbo, daí que a boca continue torta! — a partir do aparelho do próprio Estado. E em plena democracia! Por que digo isso? Porque, ainda que fosse outra a convicção do titular da AGU, ministro José Antonio Dias Toffoli, caberia, como cabe, ao órgão, dada a sua natureza técnica, fazer a defesa que faz. É sua obrigação funcional.

Eugênia Augusta é o terceiro vértice desse triângulo da insensatez. Na contestação à AGU, ela escreve o seguinte delírio: “A impunidade das autoridades do passado inspira e dá confiança aos torturadores e corruptos do presente, que continuam agindo de maneira muito parecida, a despeito de as leis tratarem qualquer tipo de tortura como um crime imprescritível."

Há em trecho tão curto uma soma impressionante de bobagens. Em primeiro lugar, observo que quem acaba afagando torturadores e corruptos — os de agora — é a procuradora. Afinal, ela os livra de sua responsabilidade pessoal e os coloca como produto dos desmandos do passado. Há torturadores hoje no Brasil? Onde? Ela tem a obrigação de denunciar. Eu denuncio: estão espalhados pelas cadeias Brasil afora. Quem se interessa em combatê-los? Ninguém! Afinal, a rotina de tortura nesses lugares atinge uma gente sem o pedigree da esquerda. Em segundo lugar, Eugênia Augusta sabe muito bem que, no Brasil, a lei que pune a tortura é de 1997. Se o método consiste em pegar leis contemporâneas para ajustar contas com o passado, voltaremos às caravelas.

O País dos Petralhas
Um dos textos de O País dos Petralhas, nas páginas 156 a 161, trata desse caso. Foi escrito em 29 de agosto de 2007. Está no capítulo “Sociedade das Idéias Mortas e Delírio Esquerdopata”. Por incrível que pareça, a ladainha continua a mesma. Leiam:

* REVANCHISMO E MITOLOGIA ESQUERDOPATA QUEREM REVER LEI DA ANISTIA – 29/08/2007
“Está previsto para hoje, em cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Lula, ex-preso político, e de vários ministros, o lançamento do livro "Direito à Memória e à Verdade", cujas páginas registram o perfil dos mortos e desaparecidos sob a ditadura militar brasileira. A obra resulta de cuidadoso trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, presidida pelo advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa. Editada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República nesta gestão do ministro Paulo Vannuchi, é, com certeza, o mais importante documento histórico sobre os anos de chumbo desde a publicação de "Brasil: Nunca Mais", assinado pelo cardeal d. Paulo Evaristo Arns, hoje arcebispo emérito de São Paulo, e o reverendo Jaime Wright.”

Assim começa Frei Betto o seu artigo na Folha desta quarta. Opinião é como intestino: todo mundo tem. E a democracia, onde há democracia (não é o caso da Cuba de Fidel Castro... e de Betto), garante a sua expressão, o que é ótimo para o regime de liberdades públicas, mas nem sempre a verdade sai ganhando. Tá bom. Podemos pagar o preço de uma impostura ou outra para ter um regime democrático. Mas elas precisam ser denunciadas.Uma das mentiras esquerdopatas que costumam triunfar é a de que a história é sempre contada pelos vencedores. Não é regra. Às vezes, sim; às vezes, não. Leiam, por exemplo, Os Doze Césares, de Suetônio. Os mandatários romanos não aparecem ali fazendo, necessariamente, um bom papel. Nem A Ilíada, que é literatura (e, pois, também história), é sempre airosa com os gregos — Heitor, o vencido, é uma grande personagem. Muitas vezes, a crítica vem embutida no próprio elogio. David, o pintor, puxando o saco de Napoleão, fala muito mais do temperamento do baixinho invocado do que seus inimigos. Essa conversa de que é preciso contar a história dos vencidos é pura mistificação submarxista. Marx, aliás, um quase-helenista, morreria de rir dessa tolice. Até porque o discurso histórico também é história. Supor que haja dois pontos de vista apenas — o do vencido e o do vencedor — é flertar com a tentação de haver um juiz da história, que venha a desempatar a contenda. Coisa de mulas intelectuais e de totalitários.

Pedem-me que comente a iniciativa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos de publicar o tal livro, mais um, com o relato dos horrores da tortura durante o Regime Militar. É coisa do secretário Paulo Vannuchi. Um anterior, Nilmário Miranda, tem a sua própria obra a respeito: Dos Filhos Deste Solo, em parceria com o jornalista Carlos Tibúrcio. Quem sabe o próximo se dedique à mesma iniciativa... Vejam só: se há fato histórico em que a versão vitoriosa é a dos vencidos, é este. A esquerda perdeu a batalha, mas ganhou a guerra de propaganda. Escrevi um artigo sobre isso na extinta Primeira Leitura. Neste blog, tratei do assunto no dia 18 de julho do ano passado. Esta tese é minha. No caso do golpe militar de 1964, até agora, só os vencidos deram a sua versão porque amparados, olhem que coisa!, em sua suposta superioridade moral. É o habitual.

É o único caso em que o vencido é o vencedor? Não. No Ocidente, especialmente depois que a academia e os meios de comunicação foram ocupados pela cultura da contestação, isso é uma constante. O aparato analítico da esquerda, no entanto, fazia-se presente na história das idéias muito antes. Já escrevi aqui também: até hoje, os assassinos de Robespierre são exaltados como verdadeiros heróis dos direitos do homem. As melhores conquistas da chamada Revolução Francesa foram obra de conservadores, o que é solenemente omitido tanto na França como no Brasil. O único historiador que conseguiu furar o bloqueio da “mentira dos vencidos” com razoável sucesso foi François Furet. Parte da historiografia brasileira se dedica a resgatar a memória dos “vencidos” mesmo que sejam notórios bandidos, como é o caso do ditador paraguaio Solano López, visto como um “socialista” endêmico destruído pela brutalidade dos brasileiros. E quem diz isso? Brasileiros, ora essa. Em matéria de estupidez, a nossa academia não tem preconceitos.

Mas volto lá ao tal livro. Eu vinha evitando o assunto porque já escrevi muito a respeito. Se vocês acessarem o Google e botarem lá palavras-chave como “Reinaldo Azevedo indenização pensão esquerda terrorismo”, verão quantas vezes já escrevi a respeito dessa história. Quem, comprovadamente preso, foi vítima de maus tratos tem mesmo de ser indenizado — ou alguém da família no caso de morte. Quem optou pela luta armada ou pelo terrorismo (em suma: deliberadamente, pegou em armas para derrubar o governo) fez uma escolha consciente. Se morreu na batalha, pagou o preço de uma opção. Poderia ter matado. E alguns mataram. E também não sou sensível à falácia de que a guerrilha e o terror eram a última saída. Não eram. Ou seria preciso abolir todas as outras formas de resistência que houve. Mais: essa hipótese se sustenta em outra mentira, combinada com a anterior: a decisão de promover a luta armada seria posterior à decretação do AI-5. Foi anterior.

Ora, qual é o sentido de se fazer um novo livro sobre os mortos, carregando agora, mais do que antes, na descrição dos horrores a que teriam sido submetidos? E fazê-lo com patrocínio oficial, quando o estado brasileiro já admitiu, como ente legal, as suas culpas, pagando uma indenização bilionária? Sim, o que Frei Betto e seus serviçais na mídia escondem é que as indenizações às “vítimas” do Regime Militar já custaram R$ 3,5 bilhões aos cofres públicos. A cada mês, as pensões somam outros R$ 28 milhões. Eles quiseram implantar o comunismo no Brasil, e nós pagamos o pato. Já foram concedidas 17 mil reparações, 13 mil foram rejeitadas, e ainda há outras 30 mil na fila.

Lula, que Frei Betto chama de “preso político” (este apoiador de Fidel Castro não tem mesmo nenhum senso de ridículo), é um dos pensionistas. No mundo inteiro, é verdade, os “vencidos” de carteirinha lutam para contar a sua versão dos fatos. Só que, no Brasil, eles decidiram passar primeiro no caixa. Parênteses: o discurso da “versão dos vencidos”, com que se tenta enobrecer o livro, seria um argumento muito interessante num tribunal. Não é legítimo supor que, uma vez “vencidos”, usam a sua narrativa extremada como mais uma arma contra o inimigo, agora a retórica — quiçá a imaginação?

Lei de Anistia
A Lei de Anistia é de 1979. Qual foi o seu sentido? Justamente eliminar esse discurso de “vencidos” e “vencedores” e impedir, para usar uma expressão da época, o afloramento do “revanchismo”. A maioria das correntes de esquerda, diga-se de passagem, endossou essa perspectiva. E notem bem: não faltou, na linha dura militar, quem alertasse para o fato de que a lei seria apenas o primeiro passo da revanche, que viria mais cedo ou mais tarde. Tais setores argumentavam — e não sem razão — que, estivessem invertidos os papéis, e as esquerdas não lhes dariam a chance do perdão. A julgar pela experiência histórica do comunismo, viria mesmo é o paredão para os que então estavam no poder e para milhões de outros brasileiros.

O livro a ser lançado hoje cita 475 casos. O de Nilmário, 424. Não li o de agora. O outro era bastante generoso nos critérios para atribuir mortos e desaparecidos ao Regime Militar. Nem sempre a vinculação fica clara. Seja um número ou outro, Fidel Castro, o guia moral de Frei Betto, riria da brandura da ditadura brasileira. O que eu acho? Uma barbaridade, é óbvio. Com uma diferença: eu deploro as duas ditaduras; Betto, apenas uma.

Resistindo à linha dura, felizmente prosperou a corrente que propugnava em favor da abertura política, e o país pôde, então, caminhar para a conciliação e para uma transição pacífica do Regime Militar para a democracia. Reavivar agora aquelas contendas serve a quais interesses? Se o governo Lula patrocina um livro como esse, embalado por forte propaganda, poderia muito bem ter atuado, por meio da comissão que cuida do assunto, para tentar localizar corpos que ainda não tenham sido encontrados. Em vez da eficácia, busca-se, no entanto, a propaganda. E os promotores de tal iniciativa mal escondem a intenção de levar os anistiados “do outro lado” para o banco dos réus.

Escreve Frei Betto: “A nação, entretanto, tem o direito de resgatar a sua memória e corrigir aberrações jurídicas como a "anistia recíproca" do governo Figueiredo. Inútil querer impedir que as famílias pranteiem seus mortos e clamem por seus entes queridos desaparecidos. E, a exemplo do Chile e da Argentina, o princípio elementar do direito exige que crimes, sobretudo aqueles cometidos em nome do Estado, sejam investigados, e seus responsáveis, punidos, para que a impunidade não prevaleça sobre a lei nem se perpetue como tributo histórico.”

Há, aí, dois truques sujos no que respeita à retórica e à história. “Resgatar a memória” — e os corpos — é uma coisa. Rever a “anistia recíproca” é que é uma aberração. Andaram bem, no passado, os que assaltaram bancos, promoveram o terrorismo, a guerrilha e também mataram? Até onde chega a paixão de Frei Betto pela revisão da história? O segundo truque é equiparar a ditadura militar brasileira à argentina ou à chilena. A primeira matou 30 mil pessoas; a outra, 3 mil — com populações muito menores do que a brasileira. Naqueles países, a ditadura deixou uma chaga social; no Brasil, felizmente, não. Ah, claro: por mil habitantes, o campeão em mortes, prisões e exílios é o ditador Fidel Castro, o amigo de Frei Betto.

Matou ou não?
Indagado pela revista Playboy se já matou alguém, José Dirceu não quis responder. Deixou para o futuro, para as suas memórias. Eu, por exemplo, posso dizer: nunca matei ninguém. É bem provável que quem me lê também não. E outras tantas figuras do governo e da base aliada que participaram da luta armada e de ações terroristas? Eles têm ou não as mãos sujas de sangue? Em alguns casos, é quase fatal supor que sim. Mataram em nome do quê? De uma causa? A causa do comunismo era moralmente superior à do combate ao comunismo? Ou terão a cara-de-pau de dizer que seus assassinatos ajudaram a construir o regime democrático no Brasil?

Os “vencidos” já venceram e já contaram a história do seu jeito. Partidários óbvios de um regime facinoroso, eles estão por aí fazendo as vezes de combatentes da liberdade. O livro é só uma peça a mais no proselitismo vitimista, que busca ajustar contas com o passado. E que governo o promove? Um capaz de se meter numa conspirata — não com um, mas com dois ditadores (os amigos de Betto) — para devolver dois pobres pugilistas a uma tirania; a tirania que os “heróis” de si mesmos, sem qualquer apoio popular, queriam implantar no Brasil.Que interpretação é esta?

Este é um texto de vencido ou de vencedor? Conheci a truculência da ditadura com 15 anos, como estudante secundarista, perseguido por um agente de sobrenome “Olay”. Estará vivo ainda? Isso faz 30 anos. Túlio Bulcão, meu professor então, meu amigo ainda hoje, militante do PT, conhece bem a história. Outros que me davam aula também. Eu era socialista? Ainda não exatamente, mas me interessavam as pessoas que diziam coisas que o “sistema” (usava-se muito esta palavra naqueles tempos) não deixava dizer. Quando decidiram me “pegar”, era um pretexto para tentar chegar a alguns professores de esquerda — com os quais, de resto, justiça seja feita, eu nem tinha contato. Quando ingressei num grupo trotskista, cruzei com um deles na reunião, e foi difícil saber quem ficou mais surpreso.

Era 1976. Fiquei, é claro, apavorado. Mas não o suficiente para me afastar da “luta”, à qual dediquei alguns anos. Até entender, ainda bem que a tempo, que aquilo que eu buscava era a democracia, não o socialismo — descoberta que não se faz sem alguma dor e sem alguma perda. Mas isso não interessa agora, e não há qualquer risco de eu me tornar um sentimental nesta questão. O que penso hoje, e já há muitos anos, da esquerda, vocês sabem. Fiz escolhas intelectuais e morais. Mas também conheço como funciona a racionalização da barbárie e da violência na cabeça de um esquerdista. Este livro é parte de uma representação que procura entronizar santos e exorcizar demônios, contra o sentido da Lei da Anistia. Reitero: buscar corpos ou tentar saber o destino de desaparecidos é coisa diversa de rever a lei, como querem Frei Betto e seus propagandistas. Em tempo: continuam a me interessar as pessoas “contra o sistema”.

Finalmente...
A democracia no Brasil não morreu em 1964 porque a direita deu um golpe. Morreu porque não havia quem a defendesse, de lado nenhum. Um governante responsável não teria promovido ele próprio a subversão, como fez João Goulart, incentivado pelos nacionalistas bocós e pelos bolcheviques tupiniquis, que imaginavam que ele pudesse ser o seu Kerensky. Não podia. Era ainda mais idiota. Deu no que deu. O Brasil não merece reabrir uma ferida porque um populista meio vulgar decidiu dar as mãos a meia-dúzia de “vencidos-vencedores” que não conseguem nem superar nem se livrar de suas próprias obsessões.

por Reinaldo Azevedo

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