terça-feira, 7 de julho de 2009

Crítica da Razão Imatura

Para quem vive com sérias restrições orçamentárias e gosta de ler os clássicos, o que por coincidência é o meu caso, a Editora Martin Claret está oferecendo um belo presente: grandes obras de nomes ilustres em diversos campos do conhecimento e da literatura, a um preço bem acessível. É uma excelente oportunidade para se reler livros perdidos nas reviravoltas da vida, ou comprar aqueles que sempre quisemos ler, mas que são difíceis de encontrar ou, quando encontrados, nem sempre há dinheiro suficiente para comprá-los. Inaugurei minha lista de pechinchas adquirindo, a apenas sete reais cada, Ética a Nicômaco de Aristóteles e Manuscritos Econômico-Filosóficos de Karl Marx. Foi uma escolha casual, mas que acabou sendo oportuna por compreender dois filósofos dotados de ethos diametralmente opostos, e por que um deles – Marx, é claro – tornou-se, infelizmente, o arquétipo do intelectual moderno.

A célebre investigação de Aristóteles sobre o Bem, como toda a obra do estagirita, revela a maturidade de um homem verdadeiramente sábio, possuidor daquela sinceridade que, nas palavras de Olavo de Carvalho, "une coração e cérebro, ethos e logos", que dialoga com outros homens de sua estatura intelectual e moral na busca imparcial dos primeiros princípios e aponta para os jovens de espírito ainda agreste o caminho árduo do saber genuíno. Não é à toa que a filosofia de Aristóteles é universal e permanente. Ele legou um patamar de consciência e excelência do qual qualquer recuo representa um enorme retrocesso para a humanidade.

Marx, por sua vez, representa outro tipo de filósofo: o intelectual ativista eternamente inquieto, insatisfeito e revoltado, dedicado exclusivamente a transformar o mundo cuja essência ele se jacta de ter divisado num relance de genialidade. Por pensar que já sabe tudo – quando na realidade tudo ignora – ele é todo movimento febril e nunca sóbria reflexão. O marxismo penetrou fundo demais na ideologia contemporânea e, como as tendências filosóficas que predominam no mundo das idéias em uma determinada época fatalmente acabam por gerar uma ordem social que espelha essas tendências – as idéias têm consequências, já disse o filósofo Richard Weaver em um belo livro -, a sociedade em que vivemos é marcada pela esterilidade trágica de uma recorrência prometéica, por assim dizer. O intelectual moldado por Marx submerge repetidamente a humanidade em tsunamis revolucionários que se esboroam assim que a superficialidade e a inviabilidade das utopias coletivas imanentes desnudam toda a sua perversidade inevitável. Nenhum pensador influenciou tanto a nossa época quanto Marx. Ele é o modelo funesto do letrado enragé moderno e seus erros intelectuais e morais são a síntese dos desastres materiais e espirituais dos últimos 150 anos.

Nos escritos de juventude contidos no livro mencionado o método e o sistema de Marx encontram-se plenamente desabrochados. Toda a sua produção intelectual subsequente é uma tentativa – inútil – de demonstrar materialmente, influenciado por Feuerbach e pelos economistas britânicos, as conclusões a que ele chegou na flor de seus vinte e poucos anos pela via de um misticismo intuitivo inspirado em Hegel. A propósito, cabe um parêntese para destacar desde já um sinal inequívoco de degenerescência intelectual dos sucessores filosóficos de Marx, que vai se acentuando a cada geração: esses tentam cada vez menos fundamentar concretamente seus argumentos, desaguando na própria negação da possibilidade de demonstração lógica e probatória cabal de suas conclusões, ou seja, no relativismo característico da "pós-modernidade".

O que chama a atenção nesses textos do jovem Marx é a inconsequência e a temeridade com que as mais desvairadas lucubrações vão se sucedendo, sem a preocupação de submetê-las a um crivo crítico. Marx critica tudo, exceto a si mesmo. Ele joga com as palavras e brinca com falsos paradoxos, evidentemente deslumbrado com a beleza do próprio discurso, como um adolescente ostentando um tênis novo. Muito talentoso, erudito e inteligente, sua mente é fulgurante, porém imatura. E assim permaneceria até o fim de sua vida, um eterno filósofo-teen. No livro de Aristóteles encontro uma advertência que parece ter visado especificamente Marx e seus duplos:

"Cada homem julga bem as coisas que conhece, e desses assuntos ele é bom juiz. Assim, o homem instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesse assunto, e o homem que recebeu instrução a respeito de todas as coisas é um bom juiz em geral. Por isso, um homem jovem não é um bom ouvinte de aulas de ciência política. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em torno destes que giram as discussões referentes à ciência política; além disso ser-lhes-á vão e improfícuo, já que o fim ao qual se visa não é o conhecimento, mas a ação. E não faz diferença alguma que seja jovem na idade ou no caráter; o defeito não é questão de idade, e sim do modo de viver e de perseguir os objetivos ao sabor da paixão. Para tais pessoas, assim como para os incontinentes, a ciência não é proveitosa; mas para os que desejam e agem de acordo com a razão, o conhecimento desses assuntos será muito vantajoso."

A imaturidade é para mim o traço principal do caráter e da obra de Marx, jovem e velho, e do intelectual engajado atual nele inspirado. Não é por acaso, pois, que o conteúdo, o estilo e o vocabulário dos escritos do filósofo alemão transpirem contemporaneidade a cada parágrafo. É que lemos diariamente nos jornais e nos livros da moda intelectuais que o imitam em tudo e por tudo, mesmo que talvez inconscientemente. O nosso zeitgeist é marxista. Não se pode esperar boa coisa de uma humanidade que se deixa guiar por rebeldes sem causa.

Como ressaltou Aristóteles, essa imaturidade juvenil não se relaciona necessariamente com a idade. Na mesma época de Marx, jovens pensadores como Alexis de Tocqueville e Herbert Spencer estreavam no universo das idéias com obras clássicas, que denotavam espíritos já amadurecidos e circunspectos. Frédéric Bastiat deixava a placidez de sua província, onde se dedicara por décadas ao estudo e à reflexão, para ingressar nas liças ideológicas de Paris, combatendo e refutando com sua eloquência e fulgor intelectual as mesmas idéias socialistas a que Marx imprimia forma definitiva, sem mudar a essência. Não foi por falta de alternativas melhores que o modelito marxista triunfou.

É interessante constatar nos autores citados nos "manuscritos" aqueles que fizeram a cabeça do Marx "teen", pois vemos que o socialismo que ganhou a posteridade sob o rótulo de marxista já estava totalmente desenvolvido bem antes de Marx. São economistas ricardianos de "esquerda" e aristocratas demagogos invejosos dos novos ricos industriais, os quais acusavam farisaicamente de instaurar um inaudito regime de exploração dos trabalhadores. Não carecem totalmente de fundamento as acusações de plágio vertidas contra o barbudo alemão por anarquistas e outros autores socialistas, como Rodbertus. Marx invoca seguidamente a autoridade, na época incontestável, de Adam Smith, para fundamentar a idéia de exploração no trabalho como fonte de todo o valor. O filósofo escocês, porém, foi um pensador sério da estirpe de Aristóteles, que buscava compreender o homem e a economia e não transformá-los. Sua teoria do valor-trabalho representou um erro intelectual, grave, mas isento de má-fé. Escrevendo na década de 1770, ademais, Smith não poderia prever o estupendo aumento da produtividade do trabalho que a acumulação de capital e a aplicação da ciência à produção no contexto do liberalismo iria gerar.

Essa revolução produtiva superou o pesadelo malthusiano da escassez fomentada por pressões demográficas sobre recursos naturais limitados e resultou em uma crescente elevação do padrão de vida geral, sobretudo dos trabalhadores, antes ralé abandonada por todos (salvo pela Igreja) e condenada à fome e ao crime. O agudo crescimento populacional na Europa do século 19 testemunha o fato óbvio de que havia agora meios para permitir a sobrevivência de cada vez mais gente, que do contrário teria morrido ou nem sequer nascido. No entanto, é a imagem mítica de superexploração de desvalidos por capitalistas inescrupulosos, forjada por Engels sobre falsificações anteriores, que caracteriza até hoje aquele período na imaginação do público. Marx e Engels não têm desculpa para ignorar e distorcer os fatos que se passavam diante de seus narizes, nem para se apegar teimosamente à manifestamente errada teoria do valor-trabalho. Aliás, eles até teceram belos elogios no manifesto comunista à transformação produtiva promovida pela "burguesia", mas sem recuar um milímetro de suas insustentáveis posições socialistas.

Coube a Bastiat refutar facilmente essas idéias, ao simplesmente enfocar a economia do ponto de vista do consumidor, coisa de que Marx fugia como o diabo da cruz. Ora, se a produtividade do trabalho crescia tremendamente, quem consumiria tudo o que era produzido, senão os próprios produtores? Produzindo-se mais, consome-se mais. Parece óbvio e é, salvo para quem prefere viver no mundo fictício da ideologia marxista. Por outro lado, Marx insiste na idéia – que não é dele, como se pensa, mas bem anterior - de que o trabalhador livre se tornara mercadoria e presa de uma sujeição execrável aos infames capitalistas. Trata-se de um disparate, vez que pela primeira vez na História o homem comum deixava de ser propriedade de outrem, como na escravidão, ou vinculado eternamente – ele e seus descendentes - a um lugar e a um senhor, como na servidão feudal. Pela primeira vez qualquer pessoa podia, inclusive, quando dotada de talento, se tornar empresário e enriquecer satisfazendo melhor do que outros os desejos dos consumidores. O fim da sociedade de status abria a todos o caminho a que suas energias e dons particulares pudessem levar. Contudo, num verdadeiro giro orwelliano, para Marx o trabalho livre era uma espécie de escravidão e a sociedade sem castas do nascente capitalismo era na verdade caracterizada por castas imutáveis: burguesia e proletariado.

Marx se orgulhava de ser radical, posto que "ser radical é segurar tudo pela raiz" e "para o homem, a raiz é o próprio homem". Mas que "homem" é esse que, privado de sua individualidade, se reduz a um nada em uma classe abstrata? A procura desse "homem" vago e abstruso só podia desembocar na calamitosa e previsivelmente fracassada "construção do homem novo" dos coletivismos totalitários do século 20. A abstração de Marx custou muito caro a dezenas de milhões de homens concretos. O filósofo alemão sintetiza, por outro lado, a fusão do positivismo – a perversão da razão – e do romantismo – a revolta contra a razão -, correntes de idéias muito populares em seus dias. A síntese dessas teratologias doutrinárias ganhou corpo no historicismo de Marx, tola filosofia da imanência desmascarada com argumentos singelos, mas irrefutáveis, por Karl Popper.

A mera imaturidade não é suficiente para justificar uma cegueira tamanha diante da realidade ululante. Era preciso também uma boa dose de má-fé, representada pelas indesculpáveis falsificações de dados e estatísticas perpetradas por Marx para torturar os fatos até que se enquadrassem em seus moldes teóricos. O intelectual ativista moderno, como seu santo padroeiro, é, além de imaturo, um mentiroso. Não causa surpresa que as estrelas do ativismo letrado, os que fazem a cabeça da garotada, sejam mitômanos irresponsáveis como Bertrand Russell, John Maynard Keynes e Jean-Paul Sartre. Não supreende também que o nosso tempo, a despeito dos grandes avanços materiais, seja talvez o mais confuso e perdido espiritualmente de toda a História. E nada vai mudar enquanto as novas gerações continuarem a ser educadas no espírito de Marx e não na sobriedade madura de Aristóteles.

por Alceu Garcia

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